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Mais de 2,4 milhões de brasileiros têm diagnóstico de autismo. O país está pronto para lidar com isso?

Dificuldades de linguagem afetam 75 % das crianças com TEA em idade da alfabetização e a abordagem ABA não pode substituir terapias essenciais

Dados divulgados pelo Censo 2022 do IBGE nos últimos dias indicam que 2,4 milhões de brasileiros possuem o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), o que representa cerca de 1,2% da população. Agora especialistas alertam para desafios ainda pouco discutidos: a compreensão dos perfis de fala e linguagem, as dificuldades de interação social e o impacto direto que isso tem no processo de aprendizagem e nas oportunidades ao longo da vida.

Para a médica otorrinolaringologista e foniatra Dra. Mônica Simons Guerra, referência nacional em transtornos de linguagem e aprendizagem, um dos principais problemas é que a Análise do Comportamento Aplicada (ABA) está sendo encarada como solução única e excluindo tratamentos e avaliações essenciais, como a Fonoaudiologia e a Foniatria.

“Este é um grande erro. A terapia fundamentada, voltada para a linguagem, é extremamente importante, principalmente para crianças pequenas, porque a linguagem é a base da constituição da criança como sujeito, do cognitivo, de como será na escola e na vida pessoal futura”, explica Mônica. “A ABA não é terapia de linguagem. Pode ajudar no comportamento e na autonomia de crianças com TEA, mas não substitui nada. É preocupante ver a linguagem ser reduzida a reforços externos. Construir comunicação vai muito além de repetir palavras: envolve interação, significado, intenção. Cada criança precisa de um olhar individualizado”, conclui.

Outro ponto sinalizado pela médica é que muitos casos são classificados como TEA sem que haja avaliação criteriosa da linguagem e da interação social. “A comunicação no autismo não é uma questão simples de fala ou silêncio. É um processo complexo, que reflete diretamente no desenvolvimento acadêmico, social e no futuro profissional dessas pessoas”, afirma.

O aumento de diagnósticos precipitados acontece especialmente em crianças pequenas que apresentam atraso na fala ou dificuldades de socialização, mas que podem estar enfrentando outras condições de neurodesenvolvimento. “É comum que atrasos na fala e linguagem sejam interpretados como autismo, o que leva a diagnósticos equivocados. Isso é grave. O TEA exige uma avaliação criteriosa, feita por equipe multidisciplinar, com análise minuciosa de todas as áreas do desenvolvimento e com ênfase na linguagem e na comunicação”, explica.

É nesse contexto que a atuação médica da foniatria se torna indispensável. “A nossa atuação vai além dos diagnósticos diferenciais e da avaliação da audição. Inclui também análise dos perfis de fala, linguagem e das dificuldades de aprendizagem. Avaliamos se a dificuldade de comunicação faz parte do TEA ou decorre de outro transtorno, como o Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem (TDL), perda auditiva ou até fatores ambientais, como baixa estimulação em casa ou na escola ou exposição excessiva a telas”, detalha Dra. Mônica, que atua há mais de 15 anos na avaliação de crianças com desafios comunicativos.

Mesmo entre as crianças corretamente diagnosticadas com TEA, cerca de 75% apresentam algum grau de dificuldade de linguagem, especialmente entre 7 e 9 anos. Isso se manifesta de formas diferentes: algumas são minimamente verbais, outras apresentam alterações na fala e na linguagem, como erros articulatórios, trocas ou omissões de sons, dificuldades na formação de frases, incapacidade de relatar fatos ou conteúdos aprendidos na escola e dificuldades em compreender o significado das palavras e textos lidos.

Também são comuns a presença de ecolalia (repetição de palavras ou frases) e fala monótona. Há aquelas que têm vocabulário extenso, mas que apresentam dificuldades para compreender a linguagem em diferentes contextos, interpretar figuras de linguagem e piadas e manter conversas de forma natural e funcional.


Esses distintos perfis refletem o funcionamento de várias áreas cerebrais relacionadas à socialização e à linguagem, como a amígdala, a ínsula, o giro temporoparietal, o córtex pré-frontal e o córtex orbitofrontal. Como consequência, muitas crianças encontram obstáculos para compreender instruções simples, expressar desejos, ter empatia ou participar de interações afetivas.

“A linguagem no autismo vai muito além da fala. Trata-se de construir sentido, estimular trocas, dar espaço para a criança se expressar do seu jeito. E, claro, com muito apoio da família”, reforça a médica foniatra.

Intervenção precoce e abordagem personalizada

Com avaliação especializada e intervenção precoce de fala e linguagem, é possível promover avanços significativos no desenvolvimento comunicativo. “Não se trata apenas de ensinar a criança a falar, mas de fornecer ferramentas que ampliem suas formas de se expressar, seja por meio de palavras, gestos, figuras ou recursos de Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA). Usar estratégias lúdicas, que trabalham a interação com outro, o sentido das palavras e a construção de significado, se possível dentro dos contextos reais da vida da criança — como a casa, a escola e as relações da criança”, explica.

Entre os sinais que podem indicar a necessidade de uma avaliação especializada estão balbucio pobre ou pouco intencional, pouca busca por interação, dificuldade em manter contato visual, falta de resposta quando chamado pelo nome e pouco interesse em compartilhar experiências (como apontar ou mostrar objetos) — sinais que podem ser percebidos já no primeiro ano de vida.

Além disso, são sinais de alerta a ausência de palavras isoladas por volta dos 18 meses, a ausência de combinações de palavras por volta dos dois anos, fala imprecisa ou “enrolada” que não é compreendida por pessoas fora do convívio, dificuldade em compreender a linguagem em qualquer idade, uso persistente de ecolalia (repetição de palavras ou frases fora de contexto) e ainda a perda de habilidades linguísticas já adquiridas em qualquer fase.

Sobre a Dra. Mônica Simons Guerra


Médica otorrinolaringologista e foniatra, Mônica Simons Guerra é doutora em Comunicação Humana e Saúde (PUC-SP), membro da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF) e especialista em distúrbios da comunicação humana. Professora da DERDIC, da PUC-SP, possui sólida experiência na avaliação de pacientes com TEA, TDL, perda auditiva, síndromes genéticas, fissura labiopalatina, síndrome de Down, entre outras condições. Realiza avaliações clínicas baseadas em evidências e fundamentadas na ciência.

Mais informações em dramonicaguerra.com.br